Faço parte de uma família dita numerosa, pai, mãe, três filhos biológicos, pássaros e cágado adotados e adotados por um cão. Costumamos dizer que somos ''Os Cinco'' em analogia aos livros juvenis. Até porque, o que não nos faltam são aventuras, em nada nos assemelhamos aos personagens. Não considero a minha família numerosa na maior parte do tempo. Por vezes sentimos a falta de mais um filho/irmão, assim faríamos 3 pares perfeitos e evitamos a formação em quina nas caminhadas. Como nos damos muito bem, muitas vezes implicamos, rimos e provocamos. Principalmente, quando um elemento do bando dos cinco, o desavisado ou adoptado, se encontra fora do contexto.
Se há coisa que sempre trabalhámos em família, foi a capacidade de argumentação, percepção, leitura corporal, detecção de mentira, correntes de linguagem, comunicação, processos mentais, emoções, crenças, tentamos que não existam tabus, nem exacerbações e as nossas brincadeiras, como todas as outras, servem este propósito. Tentamos ao máximo que todos se sintam compreendidos, amados, fortes, seguros, conscientes e apoiados. O que eu não esperava era que esta brincadeira familiar, nos trouxesse uma nova e bonita visão associada à adopção.
Um dia ao jantar, estavam os dois irmãos rapazes ''Los Hermanos'', a provocar a irmã, provavelmente por algo que não fez, sabia ou ouviu, dizendo-lhe como muitas vezes lhe diziam ''Vê-se logo que és a adoptada''.
Ela habituada a responder, sem papas na língua, dona de uma mente afiada e com boa capacidade de argumentação, acercava-se a nós após ter ido colocar o CC junto a toda a documentação familiar, com passada calma, segura e confiante, enquanto reponde:
'' Hum...eu é que não estou para voltar atrás para ver a documentação, porque o jantar já está na mesa. Mas, no dia em que for ver e descobrir que a adoptada sou eu, ah, nunca mais me calam.''
Fez-se silêncio e os sorrisos sarcásticos esmorecerem, ''Los Hermanos'' não esperava por esta. Nem nós, o que iria sair dali. Expectantes, imóveis, de olhos e ouvidos bem abertos, estávamos ansiosos por saber como iria descalçar a bota. Ao que ela continua de forma altiva por perceber o nosso interesse e com olhos brilhantes confiante no seu argumento.
''Há pois é bebés. O que vocês não pensam é que se eu for a adoptada EU (com bastante ênfase no eu), posso garantir que fui a única que foi escolhida, desejada e amada. Agora vocês, como é que sabem que não são um descuido? Acidentes acontecem e a bem da verdade, os pais nunca vos iriam dizer que foram fruto de um descuido ou de um imprevisto quiçá fruto de um antibiótico. Já o adoptado, ou seja EU, não tenho essa dúvida. Se eu faço parte desta família, é porque fui verdadeiramente desejada. Olharam para mim e disseram, queremos aquela, é perfeita.'' EU fui a melhor entre a concorrência. Já vocês ... foi ... o que teve que ser, sem hipótese de escolha'.' Com ar triunfante, dá a estocada final, ''Se eu vou ver a documentação...hum.. rezem para não ser EU a adoptada, nunca mais me calam seus ''descuidinhos''.''
Findo o espanto na assimilação e consciencialização de tão verdadeira, positiva e desconcertante verdade, começamos a rir e demos-lhe os parabéns enquanto analisámos a sua versão. Não há contra resposta a dar a tão bonita e verdadeira versão. Mudou uma narrativa, adoção/amor.
Se é verdade que quem é adotado sofre com o estigma de não se sentir desejado, também é igualmente verdade que quem é adoptado foi fruto de uma escolha de amor persistente. No entanto, esta verdade fica enevoada pelo enfoque dado ao abandono sofrido. A bem da verdade, todo o processo de adoção é por si só um processo consciente, de luta, persistência, foco, fé e muito amor, acompanhado por equipas de técnicos multidisciplinares em que nada é deixado ao acaso. Já com os filhos biológicos ...
Excluindo os casos traumáticos que também os há, ao observar os casos de adopção que acompanhei este é de facto um registo comum. Na maioria dos casos que conheço, a adoção não se deu pela impossibilidade biológica de reprodução, mas sim pela necessidade de dar amor, de dar uma família a quem não a teve biologicamente. Foi necessário durante todo o processo uma enorme capacidade de resiliência, persistência e fé para não desistir a meio. Num dos casos que conheço, os pais iniciaram o processo de adopção ainda o bebé não era nascido. Queriam muito adotar uma criança, independentemente do género, idade ou raça e esperaram longos anos, até que um dia o milagre aconteceu. Fizeram parte de grupos e reuniões de preparação, trataram de todas as condições exigidas no processo de adopção, algumas melhores e mais exigentes do que as necessárias para a chegada de um filho biológico. Dois, por vezes três filhos biológicos partilham o mesmo quarto, tal não é possível num processo de adopção. É necessário comprovar capacidade psicológica, estrutura familiar, económica e tempo para dedicar e acompanhar o filho adotado. O que muitas vezes não se verifica com os filhos biológicos. Sem falar que o acompanhamento institucional prolonga-se ao pós adoção. Outro caso de amor, foi o de um casal com filhos que adoptou uma criança com problemas respiratórios graves, conscientes dessa mesma fragilidade. Outro houve que adotou conscientemente uma criança com problemas neurológicos. Para já não falar de alguns casos, que empaticamente muito me tocam, em que o casal adoptou uma criança, sendo esta, filha biológica de um deslize extraconjugal. Calce o sapato do progenitor adotante, não deve ser fácil. Dentro deste contexto poderemos similarmente incluir as crianças fruto de uma calada e não assumida relação extraconjugal. A diferença está no conhecimento ou desconhecimento do facto.
Bem sei que cada caso é um caso, ainda que de forma mais ou menos nítida, todos os casos de adopção que conheço tem em comum, tal como as duas faces de uma moeda, amor/rejeição. O que me remete para uma história que circula nas redes sociais em que o menino pergunta ao índio qual o lobo mais forte, o bom ou mau. Ao que o índio responde, aquele que alimentares.
É de conhecimento geral que os factos que nos compõem, tem a força da narrativa e emoções que lhes decidimos atribuir. Daí que para alguns um contexto pode ser suportável e servir como alavanca para algo melhor, para outros um temporal no qual definham. Também é facto que não podemos alterar a as nossas histórias mas podemos mudar a nossa narrativa. Toda a moeda tem dois lados e a partir de uma brincadeira de irmãos, a adoção que já víamos com olhos de amor, passou na minha família a ter uma visão a privilegiada e incontestável. Agora lutam para serem o adotado.
A todos os adultos adotados com que trabalho, costumo contar esta história. Mesmo quando reconhecem que foram amados e que nunca houve distinção entre irmãos, esta não é a narrativa comum. As concepções sociais e a narrativa social continua a ser rejeição/adoção e este estigma condiciona-nos por toda uma vida em algo que temos que aceitar. Não dependeu de nós tal facto, azar ou sorte. É algo que nos compõe, que nos moldou no que somos agora. Só o agora importa e pode ser alterado. O passado, tem e deve ser aceite pois, não pode ser alterado. Tampouco nos deve condicionar no agora se assim o for, continuamos no agora a viver de passado, a alimentar e a reforçar o passado. O único que vive e ganha em viver no passado é museu.
Muito há para falar sobre este tema contextualmente tão vasto e emocional. No entanto, espero que esta narrativa ajude a todos os que dela necessitarem para se fortalecerem como seres humanos, sentirem amados, completos, preferidos, integrados, especiais, desejados ...
Espero que tenha gostado
Tudo de bom
IG
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